segunda-feira, abril 17, 2006

Sinto ainda o seu cheiro no meu corpo de menina. Esse odor intenso que me acompanhava durante horas e horas a fio de brincadeira ou, mais tarde, de solidão. Voluntária, mas ainda ssim solidão. A "sala grande" era o meu esconderijo. O local para onde fugia quando queria brincar, sonhar e, depois, escrever. Sentava-me junto à janela, na pedra fria com um maço de folhas "trazidas da loja do avô" e passava para o papel tudo o que me vinha à mente. O odor a vinho do Porto misturado com o cheiro a antigo fazia-me sentir bem. Sentia-me segura, na "sala grande".
O Tempo passou. O tecto trabalhado da "sala grande" da casa dos meus avós, os do Douro, ruiu, levando com ele o cheiro a segurança, a paz, a sonho... A "sala grande" deu lugar a uma sala ainda maior, embora bastante mais pequena. Cheira só a tinta, agora. E a falso. O tecto já não é de gesso trabalhado. As bordas são uma imitação, pladur "esculpido" de modo a assemelhar-se aos cachos de usas que outrora nos sorriam, lá de cima. Já não me sento junto à janela, com o maço de folhas na mão. A loja do avô fechou há já muitos anos. Assim como a lavandaria. Os hábitos perderam-se a meio do caminho. Já não se usam faixas roxas para adereçar os cruxifixos na igreja, na época Pascal. A família não se reúne para a missa de Domingo. A avó já não cozinha quando está a família, excepto no Natal. Não ficamos toda a tarde sentados no jardim, a olhar a beleza do Douro. "Não há Tempo..." Uns para aqui, outros para ali... "Não há Tempo...".
O Tempo trouxe a mudança. As rugas apareceram, os filhos cresceram, os netos nasceram... Só o velho jazigo do tão querido avô Zé se mantém intacto, ora com flores luzidias, ora com pétalas amarelecidas, para nos mostrar que a mudança somos nós que a construímos...


[E a saudade dói na pele, como o arrependimento dói na alma...]